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DECLARAÇÃO DE CULPA


Colors in the wind - por J. Ribas

Sou culpado de subir os degraus 
que a lança do sol não quis vencer 
e crer em coisas que não acontecem
porque um dia podem acontecer,
sou o culpado dessa fé persistente
do café embotado na xícara
sem ler o borrão no último gole do ser
de ficar quieto, e continuar a viver;

Sou culpado pela insolência do porte
pelo desafio da alma, a taça quebrada
o açúcar derramado, a poeira no livro
pelo sangue no dedo ao cortar o raio 
que interrompe o convexo e a maçã,
sou culpado pelo pecado mesmo
e até pela anuência do pecado
na condenação sumária de querer; 

Sou culpado do verso que não fiz
pela areia no aparelho sanitário
pelo assombro falso de sorrir
sou culpado pelo tumulto da ordem
pelo tempo partido nas asas do colibri,
sou o romântico e a desculpa piegas
para o entrevero tosco do final
e pelos beijos fadados a me trair;

Sou o simplório culpado, o esperançoso
aquele que fica a espreita da luz
depois que a aurora cede lugar à manhã
sou o atordoamento de ter culpa
desde sempre e antes do nascer
mesmo que pudesse me defender,
sou culpado de não ter uma alegação 
de roubar os talheres, e me esconder;

Culpado é a voz da minha saga
o meu acervo no museu das horas
a chave da minha descrença
o bastião de honra no turbilhão do amor,
culpado dos pingos da chuva na sacada
dos anjos caídos, da farsa do bem
culpado ainda das garças ao vento
de estar nu, e voar o tempo de ninguém;

Sou culpado de decifrar as escarpas
de crer no evangelho das pedras
de acender luzes pelos caminhos
aquele que faltou na lista de espera
e já contava com ficar sozinho,
único a ser inscrito no rol dos culpados
o artista da culpa, pintor e escultor
e ainda soldado raso e desertor...

Porém, ante meus olhos imputáveis 
os sonhos me delegam o direito 
de ir às altas montanhas e me atirar
além da claridade, e do devir eterno,
ao lugar em que o sol não se adianta
nem para um lado, nem para o outro
dos hemisférios da completude...
e dali, celebro a eterna inocência.



Procura a ordem  
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.

João Cabral de Melo Neto


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