BRIGHT SATURDAY
por
J. Ribas
Primeiras horas da
manhã, e as ruas despovoadas. Observo o menino a brincar com o gato na sacada,
nesse preciso momento, ansiava uma chuva de meteoros, ou, podia desabar um
cometa; o Birrento deve sair da nuvem e sorrir displicentemente, ou fazer algo
imprevisto, mas não...
Boca Suja, o papagaio,
diz palavrões, todos ainda dormem; é um sábado daqueles, o tempo nublado não
promete praia, mas há sempre uma saturday night, ouvir jazz e MPB,
cantarolar love me or leave me da Billy Hollyday,
repetir os lemas dos anos setenta, meio hippie e meio out, discutir os Vedas,
tatuar all We need love em sânscrito.
Ed, o pistoleiro,
levanta da cama e escancara a janela, coça o saco na frente de quem for
espreitar o sobrado amarelo com janela de vidro. Mesmo sem simpatizar com a
figura, acho que é um dos únicos que se salvam dessa modorra habitual. O maluco
tem estilo, ou seria a falta de estilo que o faz ter alguma
personalidade?
Um vizinho põe no último
volume o disco do Reginaldo Rossi, não é CD, mas vinil mesmo, daqueles antigos,
o bom e velho e ruidoso e canoro tema musical pra dor de corno. Já passou das
sete horas e tudo agora é permitido, na permissividade de casas conjugadas na
rua de periferia.
Esfrego os olhos para
despertar de vez, fazer o café é o mais próximo de existir nesse momento, algo
que faz tudo mais aceitável, e mantém o vínculo com alguma coisa de humano. O
jornal chega às sete e meia, não faz muita diferença a hora, o que me interessa
é o modo como o jornaleiro atira o periódico, sempre caindo num lugar
diferente.
Imagino o dia que aquele
petardo de notícias, atinja os vasos dispostos em simetria perfeita no pequeno
jardim. Sam, a bruxa pós-punk, não iria gostar, e sairia voando na
sua vassoura. Fico na espreita da chuva de meteoros - a cena final de um filme
trash de Sci-Fi - seria um sábado brilhante!
AURORA NO APOCALIPSE
por
J. Ribas
Ao chegar, deixava a
mochila na cadeira, punha-se a falar dos acontecimentos da noite; os olhos
vermelhos como se tivesse dado um trato na erva, palavras bamboleavam em sua
boca de lábios finos e dentes amarelos.
Dessa vez, quase pego um
zumbi, disse ele, chegou um bem próximo, deu pra ver as narinas dilatadas, ouvi
os gemidos e todo o alvoroço que faziam. Ela continuava em silêncio,
indiferente, quase invisível. Não imagina o fedor que é; mas, depois que acendi
a luz, eles foram embora...
Ela ia de um lado a
outro, preparando a comida, ovos mexidos e pão, “mais pimenta ou menos”, era
sua voz quase inaudível, num sussurro, a perguntar. Sem esperar resposta deixou
o prato na mesa, enquanto ele continuava a falar, e a falar...
Teve um ladrãozinho
também, mas peguei de jeito, queria levar o filtro do motor, até tive pena...
Dei uma surra no pirralho, tenho que manter a moral, senão eles invadem de vez,
e aí? Ela sabia que tudo aquilo era inventado, porém deixava-o tagarelar até o
cansaço vir, e então adormecesse.
Há quanto tempo estavam
naquela vida? Tudo havia desaparecido, a escola destruída pela tempestade, os
prédios em ruínas, a cidade tornara-se uma grande favela, e os poucos
sobreviventes faziam planos de viajar para as montanhas, onde o estrago tinha
sido menor.
Não havia zumbis, porém,
eles eram uma espécie de mortos vivos, com a diferença que ainda tinham
esperança, ou seria teimosia? O sinal da TV era fraco, poucas eram as
transmissões no rádio; mas o alvorecer na beira da praia, epifania na imensa solidão,
valia a pena de se ver.
O NÚMERO
por
J. Ribas
Olhou em redor e as
coisas continuavam as mesmas. Pensou em flores nos canteiros, quando chega o
tempo das chuvas, surgindo teimosas apesar do abandono. Examinou as nuvens e
sentiu o vento a escorrer do leste, um leve e almiscarado perfume de maresia.
Entre os deuses não há
aflição nem gozo, pensou, e talvez nem houvesse a suposição que existissem, não
fosse o medo que nos assalta, cada vez que pensamos em abrir a sala proibida.
Somos deuses - gritou - não há nada atrás da porta, a sala está vazia.
A sensação que trazia
daquele momento, não importava em si mesma, porém, a centelha, que iniciada a
partir dali, tornava-se uma combustão em sua mente. Logo ele montava as asas da
noite, viajando pelos mundos que lhe atormentavam em visões.
Às vezes escrevia poemas
em asas de borboletas, guardava amostras de dor em vidros de geleia vazia,
catalogados pelo grau e extensão. O estudo sobre a vida dos coleópteros adoçava
seu espírito. Ficava a observar as constelações, em busca de substância para
novas palavras...
Era essencialmente
passional, queria descobrir a equação que lhe mostrasse o número, onde coubesse
o que não via e aquilo que apenas se experimenta por intuição, que fosse a
síntese do total relativo e do nada absoluto de tudo; isso posto, entre embaraços e zelos, poderia enfim sonhar.
LOLA
por J. Ribas
(Vencedor do Concurso Literário Livraria Lua Nova)
Lola, a Marylin da estiva, não era
uma a mais no teatro da noite, naquele porto cheio de homens calejados e
brutos. Não, Lola era única, inconfundível, travesti de classe; muita
lantejoula, plumas, cílios postiços, salto agulha no peep toe lilás, a peruca blond
no melhor estilo anos 50, vestido marcando as formas arredondadas. Daí o
apelido com que era conhecida de todos; o que a deixava cheia de um orgulho
insinuado em gestos de sensualidade estudada. Ela mesma não lembrava o momento
exato dessa sua paixão pela musa hollywoodiana, como uma espécie de epifania,
no quarto de adolescente na casa dos pais. A própria deusa em trajes diáfanos
lhe surgiu numa visão, o mesmo vestido da cena clássica de “O Pecado Mora ao
Lado”, o vento rematava a cena:
- Vai ser feliz, little girl! – dizia, para depois sumir
ao som de “I wanna be loved by you...” rematado pelo “Pooh... pooh... bee... doo...” – as
lágrimas lhe caíam feito chuva na tarde morna a evaporar no asfalto quente,
cada vez que buscava a memória desse dia. Certo toque dramático no gestual compunha
o conteúdo sincero do seu deslumbre. E decisivamente, aquele foi o instante de
um reconhecimento interior, o dia em que incorporou sua alma.
Ainda não encontrara o amor
verdadeiro, e talvez nem esperasse mais; depois dos trinta, o seu coração já feito
veterano, era realista bastante para não sonhar além da conta. Num mundo em que
os calouros quase não sobrevivem, ela mantinha-se firme na batalha, mesmo que
às vezes ruísse no interior da casca que construíra para si. Já fora roubada
por vários amantes, enganada e presa injustamente por ocultar pacotes
suspeitos; uma vez foi estuprada, levou bordoada nos becos escuros; quebrou
costelas, os dentes, teve que implantar um pino na mão...
O sinal que a noitada ia ser
proveitosa, era a chegada de um navio. Aqueles marujos queriam beber, dançar ao
ritmo exótico dos trópicos; muitos se confundiam, no calor das rodadas de
cerveja, e já nem distinguiam se ali era Madri, Helsinque, ou Hong Kong. As
prostitutas garantiam os clientes, era concorrência acirrada com risco de sair
briga; olhos roxos e cortes à navalha eram banais, bastava que uma das
“meninas” tentasse enganar o cafetão.
Às vezes uma disputa de ponto
terminava em morte, com direito a toda parafernália da polícia e peritos com ar
de quem já se acostumou ao cenário, a repetir os procedimentos com a
indiferença do hábito. Pouco lhes
importava a vida daquelas criaturas miseráveis, que arrastavam pelas sarjetas o
pouco de dignidade que lhes restava, seu direito a existirem.
Naquele dia Lola estava mais Marylin
que nunca, a piteira ajudava a fazer aquele biquinho sexy, coisa que demandava
horas de treino, e sessões extras na locadora para rever os filmes clássicos do
ídolo. O vestido rosa era semelhante ao do musical – Diamonds, Diamonds... – podia ouvir o tema, em algum ponto de si
mesma. O ar da noite trazia um perfume de almíscar e peixe cru; porém havia o
glamour da lua cheia, uma luz diáfana a banhar os corpos nas ruelas e nas mesas
dos bares mais concorridos. Ela sabia que tudo ali era falso, sórdido, inumano;
contudo, mesmo sem poder fazer muito, gostava de pensar que acrescentava um
pouco de encanto àquele momento; sua alma de artista vivia daqueles instantes.
Quando ele chegou junto do balcão,
Lola fez-se displicente e vaporosa, aspirou a baforada do cigarro do gringo,
homem encorpado, olhos de um azul gelado e sem brilho. A tatuagem de escorpião
no braço atlético era, ao mesmo tempo, clichê e um tanto ameaçadora, porém,
sinalizava de um modo sedutor com a promessa de aventuras densas. Foi ele quem iniciou
a conversa, meio engrolada de gringo, no entanto, ela sabia arranhar um pouco
no inglês e entendeu o gracejo:
- You’re dressed to kill, baby! – então lhe ofereceu um cigarro.
Depois de duas bebidas eles
dirigiram-se para fora do bar, Lola tinha o lugar adequado para consumar os
encontros, não era o seu estilo ficar pelas vielas do porto, como se fosse um
animal no cio; afinal ela sentia-se a própria Marylin, ou aquilo que existia da
essência da diva loira inspirava suas mais loucas fantasias, sendo parte dela,
porém tendo vida própria. Caminhou pelas vielas sujas como num palco iluminado,
era o seu momento.
Naquela noite um sortilégio a fez
esquecer quem era; por alguns instantes, seduziu e deixou-se seduzir cheia de
um torpor que ainda não havia experimentado, um delíquio de prazer fez com que
flutuasse em rumo desconhecido, pela primeira vez descuidou-se da guarda; os
receios que trazia, deixou-os de lado para mergulhar no sonho; e, até aquela
sensação de perigo iminente não a fez recuar em nenhum segundo. Pegou-se a
sussurrar “kiss me, tiger!” em gritinhos agudos. O fascínio do instante a fez
saltar na areia movediça e não podia mais recuar, pelo motivo óbvio de que não
queria mesmo retroceder. Sentiu um par de mãos em brasa a comprimir seu pescoço,
sua respiração ia ficando cada vez mais premida. A última coisa que ouviu, ou
pensou ouvir, foi uma voz distante, cada vez mais longínqua, quase
imperceptível a lhe segredar ao ouvido:
- Seja feliz, little girl! – ela ainda imaginou escutar aquela música...
“I wanna be loved by you...” Depois, não havia mais que o silêncio
apaziguador, uns passos apressados, a porta fechada com uma batida áspera, o
vulto a se esgueirar pela névoa da escuridão.
Onde estava Lola, a Marylin da
estiva? A noite fria a engolir os seres afundados em ânsias eternas, as risadas
entrecortadas de soluços abafados, os gritos roucos em aquários coloridos, as
esquinas sombrias, o cheiro almiscarado nas entranhas das almas alquebradas,
tudo continuava no mesmo lugar. Na cama, retirado o véu da personagem, a peruca
meio inclinada, olhos fixos na direção do vazio, encontrava-se o corpo de
bruços; no rosto uma lágrima escura, borrão de um grito suspenso a meio
caminho, mistura de rímel e agonia, imprimiu um traço na máscara sem nome que tinha tanto a dizer.
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